Poesia
Manoel de Barros, O guardador de águas.
Poema 12
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômem de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas – com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.
Matéria de poesia – fragmentos (Manoel de Barros)
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
As coisas que não levam a nada
têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia
Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia
Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre-diabo é colosso
O que é bom para o lixo é bom para a poesia
As coisas sem importância são bens de poesia
A máquina (Manoel de Barros)
A Máquina mói carne
excogita
atrai braços para a lavoura
não faz atrás de casa
usa artefatos de couro
cria pessoas à sua imagem e semelhança
e aceita encomendas de fora
A Máquina
funciona como fole de vai-e-vem
incrementa a produção do vômito espacial
e da farinha de mandioca
influi na Bolsa
faz encostamento de espáduas
e menstrua nos pardais
A Máquina
trabalha com secos e molhados
é ninfomaníaca
agarra seus homens
vai a chás de caridade
ajuda os mais fracos a passarem fome
e dá às crianças o direito inalienável ao
sofrimento na forma e de acordo com
a lei e as possibilidades de cada uma
A Máquina engravida pelo vento
fornece implementos agrícolas
condecora
é guiada por pessoas de honorabilidade consagrada,
que não defecam na roupa!
A Máquina
dorme de touca
dá tiros pelo espelho
e tira coelhos do chapéu
A Máquina tritura anêmonas
não é fonte de pássaros
etc.
etc.
Jazz (Mário Quintana)
Deixa subirem os sons agudos, os sons estrídulos do jazz no ar.
Deixa subirem: são repuxos: caem…
Apenas ficarão os arroios correndo sem rumor dentro da noite.
E junto a cada arroio, nos campos ermos,
Um anjo de pedra estará postado.
O Anjo de Pedra que está sempre imóvel por detrás de todas as coisas –
Em meio aos salões de baile, entre o fragor das batalhas, nos comícios das praças públicas –
E em cujos olhos sem pupilas, brancos e parados,
Nada do mundo se reflete.
(O Aprendiz de Feiticeiro)
III. Cinco poemas-canções de Cecília Meireles:
CANÇÃO MÍNIMA
No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta.
Cântico I
Não queiras ter Pátria.
Não dividas a terra.
Não dividas o céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto.
Que as coisas todas são tuas.
Que alcançará todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
Te ponhas em tudo,
Como Deus.
Cântico II
Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontem…
não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabes que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade.
És tu.
Cântico VI
Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acaba todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Cântico XIII
Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.
II. Bebedeira de Baudelaire
VINHO DOS AMANTES
(As Flores Do Mal, Charles Baudelaire)
Hoje o espaço é de luzes cheio!
Sem esporas, rédeas e freio,
Vamos a cavalo a um destino
Que o vinho torna um céu divino!
Como dois anjos que tortura
Uma implacável calentura,
No cristal azul da paisagem
Sigamos a longe miragem!
Molemente presos num elo
Dum turbilhão orientado;
Num pesadelo paralelo,
Minha irmã, junto a mim, a nado,
Fugiremos sempre risonhos
Ao paraíso dos meus sonhos!
Em tempos de lei seca, ouçamos Baudelaire:
“Embriagai-vos” (Charles Baudelaire)
É necessário estar sempre bêbedo.
Tudo se reduz a isso; eis o único problema.
Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo,
que vos abate e vos faz pender para a terra,
é preciso que vos embriagueis sem cessar.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a vossa escolha.
Contanto que vos embriagueis.
E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio,
na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida,
perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola,
a tudo o que canta, a tudo o que fala,
perguntai-lhes que horas são;
e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio,
hão de vos responder:
É hora de se embriagar!
Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas!
De vinho, de poesia ou de virtude, a vossa escolha.
I. Homenagem a Mário Quintana
A Verdadeira Arte de Viajar
A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali…
Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!
Bilhete
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda…
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Pequeno poema didático
O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.
A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa
Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!
POEMINHA DO CONTRA
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!
Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo…
Decerto não gostou lá muito do que via…
E foi logo inventando o outro mundo.
Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também…
No retrato que me faço
– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão…
e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!
SINÔNIMOS
Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor.
DAS ESCOLAS
Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.
CUIDADO
A poesia não se entrega a quem a define.
CARTAZ PARA UMA FEIRA DO LIVRO
Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem.
A CARTA
Quando completei quinze anos, meu compenetrado padrinho me escreveu uma carta muito, muito séria: tinha até ponto-e-vírgula! Nunca fiquei tão impressionado na minha vida.
A COISA
A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa… e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.
AS INDAGAÇÕES
A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas.
ARS LONGA
Um poema só termina por acidente de publicação ou de morte do autor.
A VOZ
Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras.
8 Comentários »
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Adorei os poemas! Muitos eu não conhecia…
Mas quando você vai convidar Cecília Meireles pra sentar nesse boteco?
Comentário por Marcele | 04/07/2008 |
Amo Mário Quintana, amo os poetas. Vou arriscar e até deixar um dos meus versinhos.
Jasmim é bela flor
Imagem da pureza
Talisman do puro amor
Orgulho da natureza
Jasmim.
Comentário por Jasmim | 07/07/2008 |
Ótima pedida Marcele. Cecília No boteco… é pra já.
Comentário por marciosales | 09/07/2008 |
Que maravilha Jasmim. Você me inspirou uma nova idéia. Vou criar um espaço no boteco para novas poesias. Vai se chamar “poemas nômades”. Vou inaugurar com o seu.
Comentário por marciosales | 09/07/2008 |
adoro quintana
vou arriscar deixar um para meu ídolo
“Quintana”
Desesperado e louco
E furando a madrugada
O poeta foi caçar
Umas rimas
Escreveria
Um conto de reclamações
Não fossem tão fugidias
As palavras
Borboleteando
Pelos ares
Ébrio
Cambaleou pelo refrão
Da noite inteira
E
Como a companhia da caneta
Por si só não faz o poema
Adormeceu bêbado
Sobre
A manhã
Cansada
José Mauro Fernandes
Comentário por ze mauro zigfrid | 01/09/2008 |
Seria interessante colocar o ano e a página do livro, as referencias mesmo.
Beijos.
Comentário por Diana | 14/06/2010 |
I love this site noboteco.wordpress.com. Lot of great information. I am Tech guy. I have been a Desktop Technician since 1997 but have tons of other interests. In my spare time… Oh, wait I don’t have any of that (just kidding). Anyways, I have been aware of this website for quite some time and decided to join the community and contribute as well as learn a lot from others. I am excited to get started on the forum and am looking forward to a great journey together. Lots of potential friends and I look forward to meeting many online.
Comentário por ArermaToomymn | 15/10/2010 |
Nesse boteco podemos revelar o que não é visto e falar o que não se tem coragem de gritar. São muitas doses da melhor bebida, poesia, pura. E quando misturada com limão, açúcar e gelo forma a mais preciosa condição de sublimação do homem, o prazer.
Muito feliz em conhecer!
Comentário por Sara Silva Amanajé | 02/05/2011 |